segunda-feira, 10 de agosto de 2009

Um homem inteiro

Conheci o Raul Solnado numa dessas noites longas e loucas que se sucediam em ritmo frenético após o 25 de Abril. Eram noites em que a liberdade era mais saboreada que os copos que lhes davam aparentemente razão de existir. Eu era sempre dos mais jovens e quedava-me na escuta. Foi um privilégio que faz parte do meu património. Recordo, numa dessas noites, que estava na mesa recheada de gente do teatro, um outro actor cujas posições eram, nessa altura, algo reaccionárias. Recordo-me que, embora com discrição, manifestei a minha estranheza por aquela "mistura", ao que o Raúl respondeu dizendo que antes de qualquer outra coisa, esse colega era seu amigo. Fiquei a pensar naquela "precedência", numa altura em que "a política estava no posto de comando". Foi uma lição numa simples frase que me ficou para toda a vida. O Raul tinha a capacidade e a coragem de dizer o que achava certo em cada momento, sempre de uma forma elegante mas firme. Foi assim com "A Guerra de 1908" no início da Guerra Colonial e, daí para diante, com todos os seus sketches que nos fizeram rir e depois pensar. Foi portanto um obreiro subtil e inteligente do despertar da consciência colectiva para as contradições da ditadura e, enquanto tal, um incansável lutador da liberdade. Fez-nos rir com elegância de um país triste, e continuou a fazer-nos rir de nós próprios, nunca cedendo à vulgaridade. A sua imensa dimensão humana está em todos os seus actos públicos e privados, porque foi um homem inteiro. Deixou-nos sózinhos mas acompanhou-nos enquanto pôde. Compete-nos agora a todos nós estar à altura do seu imenso legado humano.
Fernando Pinto

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