Conheci o pintor João Vieira em 1986, quando empreendi a minha primeira grande aventura como encenador e produtor de teatro, ao criar o Teatro do Triângulo e adaptar “O Físico Prodigioso”, de Jorge de Sena. As máscaras portuguesas (as máscaras em geral) tinham acabado de entrar na minha vida, graças ao livro/catálogo de Benjamim Pereira, e mão amiga apresentou-me ao João Vieira, a quem pedi que criasse as máscaras para o espectáculo, que abria com uma cena de caretos. Era uma aventura desendinheirada, e o João Vieira tratou connosco com a grandeza simples dos Mestres a quem a mesquinhez desinteressa. Na altura, valorizei muito a sua generosidade porque estava precisado dela. Hoje, valorizo-a também na medida em que constatei que essa grandeza é rara. Das máscaras, ficou uma pequena colecção incompleta (três delas foram, na altura, levadas à socapa por artistas que se sentiram credores...), colecção que foi tendo uso variado: comecei por procurar classificá-las de acordo com as características fundamentais das máscaras portuguesas tradicionais em que se inspiraram; depois, realizei cursos no saudoso Meia Preta, nos quais elas serviam de matéria de pesquisa teatral; em 1991, elas foram as máscaras do Desfile de Caretos, que percorreu ruas de várias cidades e vilas; e quando se realizaram as primeiras exposições sobre a máscara portuguesa que procuravam reflectir o trabalho de investigação que eu ia desenvolvendo em torno do tema, as máscaras do João Vieira complementavam com a visão de um artista maior da pintura portuguesa as fotografias que constituíam, então, o núcleo central da exposição. Foi assim que as máscaras do João Vieira foram vistas em Anderlecht, na Bélgica, numa espécie de Europália-off, mas também no Palácio Foz de Lisboa e noutras pequenas exposições pelo país. Depois, passei a usá-las apenas e pontualmente nos cursos de formação para actores com máscara que fui leccionando aqui e ali. No final de 2006, o João Vieira levou-as para Bragança, onde as mostrou na sua exposição Caretos II. Por essa ocasião, o seu amigo Manuel Pires filmou uma espécie de performance no Teatro Instável, na qual eu improvisei com as máscaras que ao longo dos anos fui aprendendo a conhecer. Lembro-me que o João se ria, enquanto eu, teimosamente inseguro, ia fazendo as minhas cabriolas. Há anos que eu vinha pensando num modo de usar essas máscaras num contexto que não queria que fosse exactamente teatral, mas antes um tanto ambíguo, mais próximo da performance. As filmagens do Manuel Peres estimularam-me a avançar. Há meses que andava a adiar a visita ao novo atelier do João. Tinha-lhe dito que tinha umas ideias, e que ia precisar da colaboração dele. Queria casar as máscaras com o seu universo pictórico, criando uma performance híbrida onde as tecnologias - de que ele se apropriou sempre com desembaraço - ajudassem a combinar pintura e actuação ao vivo. Era a oportunidade de desafiar o João, que gostava do teatro e que lamentava não lhe pedirem mais trabalhos para a cena, para uma aventura a dois. Na voragem dos dias, fui adiando essa conversa. Hoje, recebi a notícia do seu desaparecimento. Não sei como conviver com esta sensação de ter adiado o essencial. À medida que o tempo passa, e os amigos começam a desaparecer na noite irreversível, as nossas prioridades na vida vão-nos parecendo, no mínimo, irrisórias. Mas os amigos deixam-nos sempre cedo demais. Na verdade, eu e o João convivemos mesmo muito pouco. E não foi apenas nos últimos meses: sempre nos vimos raramente. Mas eu esperava ainda muito. Além de ter sido o primeiro a povoar a minha vida de máscaras, o João deixou-me uma derradeira lição: a de que não podemos adiar a cumplicidade.
Lisboa, 6 de Setembro 09
André Gago
Teatro Instável
Lisboa, 6 de Setembro 09
André Gago
Teatro Instável
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